3.9.11

"Contos inacabados de UMA banda...qualquer..." Capítulo 3


“Rust never sleeps”

A ofensiva alvura matinal faz com que o meu 1º pestanejar seja subitamente ilustrado por flashes da cena do filme “Blues Brothers”…” Are you cops ?...No mam…We’re musicians…”. À semelhança dos irmãos Jake e Elwood apercebo-me bruscamente de que me encontro também “…on a mission from God…”. Distanciando-me do profano da visão e confrontado com as ténues mas cimentadas decisões tomadas na noite anterior, capitulo perante a pesada e perigosa missão assumida…EU !…Eu é que vou ligar ao “Il Dottori” !...

Percorro tanto quanto me é “ressacamente” possível toda a sequência da noite anterior de forma a elaborar um plano…plano…preciso de um plano…

Mas antes disso tudo…

um café…

A rodopiante, interminável e musical dança da colher na chávena exemplifica o porquê da intenção e desejo serem imediatamente subjugados pela antevisão da recusa…Que argumentos ?...Como devo iniciar a conversa ?...Não vacilar perante a gélida frieza das palavras que antevejo ouvir ou assumir uma postura de “ Veni Vidi Vici”?...Recordar serviamente “Alésia” ou ostentar altivamente os louros ?...Até que ponto o açucar realmente se mistura com o café ?...Rendo-me…A evidência de que todo e qualquer plano é absolutamente irrelevante para a questão é demasiado óbvia…”So shall it be written …So shall it be done”….Este é de facto o seu modus operandi…

E por que não ?...Porque deverei eu ter receio da sua resposta?…Afinal não detenho eu nas minhas mãos o sonho de qualquer vocalista ?…dois guitarristas…compositores…ávidos por “falar”…com o espírito aberto, uma linguagem definida e dotados de um know-how mais do que suficiente para atingir o perpetuamente desejado “nirvana”…

-‘tou ?...entao zaralheng ?...Long time no see !

Porque terá sido tão óbvia a minha escolha ?...Não terá a nossa ancestral e embrionária vivência ditado o seu nome ?...

- ‘tão…’tás bom ?…

Ou limitei-me a carregar até este dia um peso e uma certeza à qual sabia não ter hipótese de fugir ?

- ‘Tou…Pá ..precisava de falar contigo uma cena…

Será presunção da minha parte achar que tenho na minha posse a resposta para toda e qualquer prece que secretamente ele tenha idealizado ?

- Mmm…então diz lá…

Por outro lado conhecendo-o como o conheço, sei que o “tempo” nele é relativo…um segundo da vida dele é uma eternidade na minha…e o que eu digiro com toda a gula e sabedoria, ele apenas ingere e consome saciando a básica necessidade de se alimentar…

-Pá…Ontem tive cá a jantar o “Strings”….e…tivemos os dois a falar…Mas conta lá…’tas fixe ?

Agora que sei que muito está por ser exposto…exteriorizado…lançado aos 4 ventos para quem quiser ouvir…ou mesmo para quem não for capaz disso…veículo de uma purgante e self-made psicanálise…isso eu sei…

- Sim…pois…e ?

E esse no fundo é o meu trunfo…Sou neste instante senhor do espaço e o lugar adequados para que o possas fazer a teu belo prazer…com toda a confortável confiança de quem joga em casa…na tranquilidade e devida segurança do teu “sofá”…

- Bem…já que perguntas…estamos a formar uma banda…e eu sugeri o teu nome para vocalista..ao que ele acedeu totalmente…ou é contigo a cantar ou não é…

Mas também estou ciente de que os códigos do programa serão teus…a chave que irá abrir a porta deste universo ainda está em teu poder…

- Pois…não sei…não sei se estou nessa…temos de nos juntar os três…e falar…Óoo pá…até porque eu já nem sei se consigo cantar…

Esta relação de mutualismo não deixa no entanto de fazer todo o sentido…afinal tu é que vais ser o espelho das nossas divagações e ao mesmo tempo o gerador do conceito e da mensagem…

- Perfeito…fiquei de marcar com o “Strings” um dia para nos reunirmos e falarmos sobre a cena toda…

Ou então no mínimo estamos todos a precisar de pura e simplesmente extravasar…loucamente…

- Pronto então marca lá isso e diz-me o dia…mas tem de ser rápido !

De facto o Neil Young tem toda a razão…”Rust never sleeps”…

…ou não…

3.8.11

"Contos inacabados de UMA banda...qualquer..." Capítulo 2

“The yellow brick road…”

 “ os olhos são o espelho da alma…”…perante o olhar inquisidor do “Strings” esta frase tão sobejamente utilizada toma por breves instantes de assalto o meu pensamento, dando desta forma início a mais um round deste nosso “jogo”…enquanto os sons agora libertados assumem o seu devido lugar na minha mente, recordo involuntariamente o porquê deste “jogo”…

Por ilustrarem momentos tão pessoais e íntimos o “Strings” e eu sempre achámos que para verdadeiramente tocar a alma de alguém nada melhor do que recorrer às músicas e livros que fazem parte do labirinto narcísico de cada um…a ser verdade que os olhos não mentem o que dizer então do corpo?...a música tem de facto esse condão…provoca em nós espasmos e reacções incontroladas…imediatas…despidas de toda e qualquer embuste…assume as rédeas do nosso sistema neurológico…expõe-nos…

Na verdade formar uma banda poderia ser entendido como apenas juntar 3 ou 4 pessoas e as respectivas influências…Meter tudo numa panela...mexer bem…cozinhar em lume brando e esperar pelo resultado final…mas …o que sempre nos interessou foi a mensagem…o que dizer…e sobretudo qual seria a “roupa” que essa mensagem iria “vestir”…e sem querer ferir gostos gastronómicos nunca gostei de sardinhas com morangos…

Não…uma mera colagem não…o “Strings” e eu já tínhamos determinado que o que quer que um dia viesse a ser feito teria a preposição de ser algo recém-nascido…e para isso acontecer não poderia haver casuais sobreposições de géneros e óbvias soluções…teríamos de ser capazes de descobrir e alimentar um fio condutor…um universo que fosse só nosso e não de cada um…um mundo onde poderíamos existir como um todo e não como uma mera soma de peças…num universo paralelo onde as leis seriam ditadas por nós… e este “jogo” servia exactamente esse propósito…despir-nos de um imediatismo fácil…mergulharmos mais fundo…descobrir a capacidade de pôr em causa tudo o que sabíamos…negar até a nossa própria existência musical…tudo…somente para conseguir ter no final uns meros grãos de areia…a quinta-essência da matéria-prima necessária à nossa futura moldagem…

A intensidade dessas já decorridas 3 horas era extenuante…as constantes e amigáveis ratoeiras …a avassaladora concentração para sem diálogos descobrir o que o outro queria tornar visível …cada cd utilizado…cada música ouvida…não passavam de um exercício no decorrer do qual estávamos a descobrir não o formato mas sim o motivo de tal contemplação sonora…construir a estrada…criar novas regras…aprender a percorrê-la sem nunca chegar ao fim…não é assim Dorothy ?

- “Il Dottori”?...estás a falar a sério?...achas que o gajo topava?...isso era genial!...esse gajo é o vocalista menos “vocalista” que já conheci até hoje…

A linguagem gestual utilizada pelo “Strings” ao proferir estas palavras era denunciadora da sua óbvia e imediata concordância.

Na realidade eles nunca tinham tocado juntos…apenas eu tinha tido essa sorte…mas cedo percebi ao longo da nossa ancestral e longínqua relação que o “Strings” mantinha e referia-se sempre ao “Dottori” como alguém merecedor de reverência e nunca visto como “mais um” vocalista mas antes como uma entidade criadora muito distante dessa figura infelizmente tantas vezes fútil.

Observo o “Strings” enquanto o seu semblante passa da fase de exaltação pura para a de reflexão e racionalidade adequada à notícia.

- Mmmm…se me falas do “Dottori” então o caso muda de figura…é que não estou a vê-lo a meter-se nalguma coisa sem pernas para andar só pelo “gozo” de dizer que faz parte de uma banda…ele é demasiado consciente e distante deste “meio” para isso…esse gajo é um crâniozito pá!

- Pá…se tenho a tua aprovação…deixa isso comigo…até digo-te mais…telefono-lhe já amanhã…e garanto-te que o gajo diz que sim!

“Il Dottori” e eu conhecíamo-nos de longa data…tínhamos dado os primeiros passos juntos…a velha história…eu toco guitarra…tu também…mas eu não sei cantar…e tu sim…’bora formar uma banda e tocar…durante anos tínhamos existido no circuito de bares de forma mais ou menos contínua e consistente…dependendo da formação mas sobretudo do estado da nossa relação…a cumplicidade e respeito mútuo falava mais alto do que a enganadora vontade de “viver” uma ilusória vida de banda…Persistia sempre esta certeza de que ele era o MEU vocalista…aquele com o qual saberia sempre o que não dizer…o que não tocar…o que não fazer…no fundo conseguia ver-nos como a continuação do legado de uns Jagger/Richards ou Page/Plant…

As diferenças comportamentais eram no entanto mais do que evidentes…apesar de sermos as duas faces de uma mesma moeda e de ter conseguido criar em conjunto momentos únicos e inesquecíveis sempre tínhamos tido uma relação amor/ódio…fruto talvez de alguma ingenuidade e leviandade inerente à nossa irreverência…o que, tendo em conta a certeza com a qual tinha apresentado esta solução ao “Strings”, criava-me um enorme problema…

De facto enquanto exibia o meu júbilo, interrogava-me mesmo se ele iria sequer atender uma chamada minha…quanto mais aceitar ser o nosso vocalista…

Afastando esse pensamento com um rápido sacudir de cabeça ergui o meu copo…gesto ao qual o “Strings” correspondeu convicta e solenemente…e proferindo estas palavras demos início à nossa celebração…

- Bem “7”!…por mim está decidido…vocalista já temos!…agora só nos falta é o nome…!!